Apesar
de ter defendido a aprovação da PEC 37, por entender que, em um Estado
Democrático de Direito, quem investiga não acusa e quem acusa não investiga,
não havia mais clima para se discutir as suas propostas, graças à eficaz
propaganda maciça da mídia que, não se sabe exatamente como, entrou na pauta de
reivindicações nas ruas. Devia mesmo ter sido rejeitado, para a garantia e a
manutenção da ordem pública.
Porém,
outras PECs deveriam ter sido incluídas nessa pauta, como a PEC 130/2007, que
põe fim à prerrogativa de foro no Brasil, ou seja, que não permite determinadas
autoridades serem investigadas pela Polícia e julgadas por um juiz, como
qualquer do povo, a PEC 75/2011, que põe
fim a vitaliciedade no Ministério Público, ou mesmo a PEC 505/2010, que estende
o fim dessa vitaliciedade aos membros da magistratura.
Agora
vem aí o Projeto de Lei (PL) 5776/2013 que pretende "regulamentar" a
investigação criminal no Brasil, como se ela já não fosse regulamentada pelo
nosso Código de Processo Penal, a partir do seu artigo 4º.
Esse
PL, na verdade, quer conceder poderes de investigação ao Ministério Público e
criar a figura do "inquérito penal", presidido por promotores e procuradores
do Ministério Público, enquanto o inquérito policial continuará a cargo dos
delegados de polícia.
O PL
5776, de autoria da deputada Marina Sant'Anna , do PT, foi integralmente
redigido pelas associações de classe dos membros do Ministério Público
brasileiro e é prova viva de que, no seu íntimo, o próprio Ministério Público
reconhece que não dispõe de qualquer dispositivo de lei atualmente para poder
investigar, pois o seu último artigo prevê a revogação do Capítulo do Código de
Processo Penal que trata da investigação dos crimes em nosso ordenamento
jurídico.
Esse
Projeto de Lei (PL) promove uma grande balbúrdia e instabilidade na segurança
jurídica do cidadão a partir do momento em que um mesmo crime poderá ser alvo
de investigações tanto no "inquérito penal" quanto no inquérito
policial, ou seja, o promotor e o delegado investigando a mesma coisa, sem que
um saiba do outro e um atrapalhando o outro, apesar de seu artigo 6º prever a
"possibilidade" de atuação conjunta.
Na
prática, o PL 5776, quando prevê apenas a "possibilidade" de atuação
conjunta, permitirá que, se preferirem, promotores e delegados realizarão
investigações paralelas sobre o mesmo crime e isso resultará, exclusivamente,
em IMPUNIDADE!
Ora,
não aprenderam sequer com a sabedoria da repartição de atribuições da função
policial, onde a Polícia Militar patrulha as ruas, previne a prática do crime,
e a Polícia Civil atua na investigação dos crimes, reprimindo-o. A duplicidade
de Instituições policiais atuando num mesmo território só é possível se a competência
entre elas for distinta. O mesmo ocorre, por exemplo, com a Polícia Rodoviária
Federal, cuja atuação se dá nas rodovias mantidas pela União, onde lá a PM não
atua.
Igualmente,
quando a Constituição estabeleceu a competência de investigar da Polícia
Federal e das Polícias Civis o disse em que casos cada uma atuaria. Não é o que
acontece com esse PL 5776.
Se
queremos mesmo (sociedade) conceder ao Ministério Público o poder de realizar
investigações diretas, sem a participação da Polícia Judiciária, temos que
considerar a investigação criminal como um "bolo" e repartir sua
responsabilidade entre essas Instituições, sob pena de um determinado crime
ficar impune porque nem o MP e nem a Polícia o investigou, com um apontando o
outro como a responsável pela inércia do Estado, num verdadeiro "jogo de
empurra".
O PL
5776 nasce com esse grande pecado.
Fora
isso, esse Projeto de Lei instituiu uma gigantesca independência ao Ministério
Público, enumerando o seguinte:
1) O
inquérito policial pode ser instaurado de ofício pelo delegado de polícia ou
por requisição (determinação, ordem) do Ministério Público ou de um juiz, ou a
pedido da vítima, ofendido, porém nem o delegado de polícia, ou o juiz podem
requisitar pela instauração do "inquérito penal" presidido pelo
promotor ou procurador;
2) Como
"dono" da ação penal, ou seja, o único que pode oferecer a denúncia
(processar) alguém pela prática de um crime, o Ministério Público pode, durante
o curso da sua investigação ou a da do delegado de polícia, propor acordos de
imunidade ao investigado, delação premiada (quando um investigado denuncia seus
cúmplices) e sobrestar (paralisar) a propositura da ação penal (não denunciar o investigado), tudo sem a
participação e a concordância do delegado de polícia, que nos casos em que
estiver investigando poderá, apenas, sugerir tais medidas ao Ministério Público;
3) Toda
e qualquer medida que dependa de ordem judicial para ser executada, como quebra
de sigilos, mandados de busca e de prisão, o delegado de polícia deve encaminhar
sua representação ao Ministério Público antes do juiz decidir, enquanto o
promotor ou o procurador, no "inquérito penal", se reporta
diretamente ao juiz; bem, se o caso investigado pelo delegado for rumoroso, o
que impede o Ministério Público decidir instaurar o seu "inquérito
penal" para "roubar" a investigação da Polícia?;
4) O Ministério Público, e só ele, poderá
realizar vistorias ou inspeções, durante o curso do seu "inquérito
penal", substituindo Órgãos como a vigilância sanitária, Receitas, defesa
do meio ambiente, conselhos profissionais, etc. e etc;
5) O
Ministério Público poderá requisitar (ordenar, determinar) a qualquer Órgão
público ou privado, incluindo empresas telefônicas, instituições financeiras, serviços de
proteção ao crédito, provedores de internet, concessionárias ou permissionárias
de serviço público e administradoras de cartão de crédito, informações,
documentos, perícias e dados cadastrais, bem como "acesso incondicional a
qualquer banco de dados de caráter público ou relativo a serviço de relevância
pública, inclusive on line"; enquanto o delegado de polícia só poderá
obtê-los mediante ordem judicial e com a aquiescência do Ministério Público, ou
pedi-los ao próprio Ministério Público; enfim, o "inquérito penal" é
bem mais "poderoso" que o inquérito policial e mais uma vez, aí, o
promotor ou o procurador poderá "roubar" a investigação do delegado
de polícia;
6) O artigo 23 desse Projeto de
Lei confere ao Ministério Público, além dos poderes referidos no item anterior,
outros tantos durante o "inquérito penal" que não foram igualmente
concedidos aos delegados de polícia durante o inquérito policial, limitando a
sua eficácia;
7) Enquanto o inquérito policial
continuará tramitando entre o delegado de polícia e o Ministério Público, o "inquérito
penal" tramitará internamente no Ministério Público, e em nenhum dos casos
o juiz poderá intervir durante o curso deles; mais uma vez, aí, se o promotor
ou o procurador quiser "roubar" a investigação do delegado bastará
apenas que ele tire cópias de tudo e instaure o seu próprio "inquérito
penal";
8) Enquanto o delegado de
polícia tem 30 dias para concluir as suas investigações, o promotor ou
procurador tem 90 dias! Caso o delegado necessite de mais prazo, deverá solicitá-lo
ao Ministério Público;
9) O inquérito policial tem que
ser concluído no prazo máximo de 90 dias e a sua prorrogação só poderá ser concedida pelo Ministério
Público mediante justificativa do delegado de polícia, enquanto o
"inquérito penal" poderá ser prorrogado por igual período e
sucessivamente (indefinidamente), mediante autorização do próprio Ministério
Público; significa dizer que o "inquérito penal" não tem prazo para
acabar;
10) Enquanto o delegado de
polícia não dispõe de prerrogativas para investigar e a Polícia continuará
subordinada aos governantes, o promotor e o procurador gozam de direitos como
inamovibilidade, independência e vitaliciedade no cargo, além de que o Ministério
Público é uma Instituição independente do poder Executivo, quase um outro Poder
da República;
Vê-se que as investigações do
Ministério Público poderão tudo enquanto às da Polícia Judiciária poderão caso
o Ministério Público concorde. É a máxima que vimos nascer nesses dias de que
"a investigação da Polícia não exclui o Ministério Público, mas a do
Ministério Público exclui a Polícia".
Por mais de uma vez vimos que o
Projeto de Lei 5776/2013 promove apenas a insegurança jurídica e coloca a Polícia
Judiciária e o Ministério Público numa rota definitiva de colisão entre essas
importantes Instituições, ao invés de garantir um trabalho conjunto e de
cooperação.
O inquérito policial, mesmo que
a Constituição não tenha determinado essa providência, passou a tramitar entre
as Delegacias e as promotorias, excluindo o juiz do controle de legalidade das
investigações, o que ocasionou que o Ministério Público passasse, ele mesmo, a
ouvir pessoas em seus gabinetes e realizar diligências policiais, requisitando
policiais militares e civis e diminuindo, ainda mais, o contingente policial.Até
a promulgação da Constituição, em 05/10/1988, com base na Lei 4.611/65, nos
crimes de trânsito, a ação penal tinha início ainda nas Delegacias de Polícia,
mediante uma portaria do delegado, funcionando a autoridade policial como
verdadeiro juiz de instrução, ouvindo todas as partes no sistema do
contraditório, remetendo o processo ao juiz relatado e pronto para sentença,
quando só então participava o promotor.
Sob o argumento de que quem
investigava não podia acusar, as associações de classe do Ministério Público
defenderam o fim dessa lei durante a Assembleia Constituinte de 1988, colocando
no texto a expressão "privativa" no inciso I do artigo 129 quanto a
titularidade da ação penal pública, obviamente que respeitando o artigo 28 do
Código de Processo Penal, que prevê a possibilidade de uma ação penal
subsidiária da pública em caso de inércia do Ministério Público, e apenas nessa
hipótese.
Mas o que se percebe, agora, é
que esse argumento não tem mais nenhuma importância, e o que esse Projeto de
Lei quer é a reinstalação, a reedição, da inquisição, onde quem acusa também
investiga, agora com contornos tupiniquins.
É óbvio que a investigação
criminal precisa ser aperfeiçoada e mais óbvio ainda que as Instituições
policiais precisam ser fortalecidas, pois há deficiências. Precisamos criar
mecanismos para que o Ministério Público possa, em determinado momento, assumir
a presidência de um inquérito policial, se as circunstâncias assim permitirem e
com a devida autorização da Justiça.
É óbvio que o Ministério Público
pode e deve continuar a ser alimentado pelo Banco Central, as Receitas, os Tribunais
de Contas, o COAF, o IBAMA e outros tantos Órgãos que promovem a apuração de
infrações penais durante o curso de suas atividades cotidianas de fiscalizar e
defender o patrimônio público, o Tesouro, o meio ambiente, etc. Mas é claro que
o Ministério Público tem que atuar em conjunto com a Polícia Judiciária caso
seja necessária a colheita de provas contra os criminosos.
É óbvio que o Ministério Público
é uma Instituição fundamental no combate a corrupção e a impunidade, mas não
mais importante que a Polícia Judiciária nessa tarefa.
É óbvio que, além de promover a
acusação judicial, o Ministério Público tem relevantíssimas funções na defesa
dos interesses individuais e coletivos, mas não menos óbvio que a Constituição
de 1988 não conferiu ao Ministério Público a possibilidade dele relaizar
investigações diretas, sem a Polícia Judiciária.
Concluindo, o Projeto de Lei
5776/2013 beira a aberração jurídica porque para se prever a possibilidade do
Ministério Público investigar é preciso alterar os artigos 129 e 144 da
Constituição, que tratam do assunto, ou seja, não deverá, ou não deveria, ser
aprovado na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados.
Além do mais, esse tema, tão
importante para as garantias individuais dos cidadãos, merece ser amplamente
discutido e debatido pela sociedade, que precisa saber exatamente quais
direitos estão em jogo, os riscos, os perigos e suas vantagens, e não apenas
ser alvo de manipulação por setores da mídia ou por grupos de pressão, cuja
atuação esconde interesses de ordem pessoal e corporativista.
Se a PEC 37 foi rejeitada por
ser a "PEC da impunidade", o PL 5776 deve igualmente ser rejeitado,
como está, por ser o "PL da inquisição".
Acho que isso aí vai diminuir a importância da policia como um todo. Como vão fazer, anexar as delegacias aos prédios do MP?
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