quarta-feira, 26 de junho de 2013

Projeto de Lei 5776, o PL da inquisição

                Apesar de ter defendido a aprovação da PEC 37, por entender que, em um Estado Democrático de Direito, quem investiga não acusa e quem acusa não investiga, não havia mais clima para se discutir as suas propostas, graças à eficaz propaganda maciça da mídia que, não se sabe exatamente como, entrou na pauta de reivindicações nas ruas. Devia mesmo ter sido rejeitado, para a garantia e a manutenção da ordem pública.
                Porém, outras PECs deveriam ter sido incluídas nessa pauta, como a PEC 130/2007, que põe fim à prerrogativa de foro no Brasil, ou seja, que não permite determinadas autoridades serem investigadas pela Polícia e julgadas por um juiz, como qualquer do povo,  a PEC 75/2011, que põe fim a vitaliciedade no Ministério Público, ou mesmo a PEC 505/2010, que estende o fim dessa vitaliciedade aos membros da magistratura.
                Agora vem aí o Projeto de Lei (PL) 5776/2013 que pretende "regulamentar" a investigação criminal no Brasil, como se ela já não fosse regulamentada pelo nosso Código de Processo Penal, a partir do seu artigo 4º.
                Esse PL, na verdade, quer conceder poderes de investigação ao Ministério Público e criar a figura do "inquérito penal", presidido por promotores e procuradores do Ministério Público, enquanto o inquérito policial continuará a cargo dos delegados de polícia.
                O PL 5776, de autoria da deputada Marina Sant'Anna , do PT, foi integralmente redigido pelas associações de classe dos membros do Ministério Público brasileiro e é prova viva de que, no seu íntimo, o próprio Ministério Público reconhece que não dispõe de qualquer dispositivo de lei atualmente para poder investigar, pois o seu último artigo prevê a revogação do Capítulo do Código de Processo Penal que trata da investigação dos crimes em nosso ordenamento jurídico.
                Esse Projeto de Lei (PL) promove uma grande balbúrdia e instabilidade na segurança jurídica do cidadão a partir do momento em que um mesmo crime poderá ser alvo de investigações tanto no "inquérito penal" quanto no inquérito policial, ou seja, o promotor e o delegado investigando a mesma coisa, sem que um saiba do outro e um atrapalhando o outro, apesar de seu artigo 6º prever a "possibilidade" de atuação conjunta.
                Na prática, o PL 5776, quando prevê apenas a "possibilidade" de atuação conjunta, permitirá que, se preferirem, promotores e delegados realizarão investigações paralelas sobre o mesmo crime e isso resultará, exclusivamente, em IMPUNIDADE!
                Ora, não aprenderam sequer com a sabedoria da repartição de atribuições da função policial, onde a Polícia Militar patrulha as ruas, previne a prática do crime, e a Polícia Civil atua na investigação dos crimes, reprimindo-o. A duplicidade de Instituições policiais atuando num mesmo  território só é possível se a competência entre elas for distinta. O mesmo ocorre, por exemplo, com a Polícia Rodoviária Federal, cuja atuação se dá nas rodovias mantidas pela União, onde lá a PM não atua.
                Igualmente, quando a Constituição estabeleceu a competência de investigar da Polícia Federal e das Polícias Civis o disse em que casos cada uma atuaria. Não é o que acontece com esse PL 5776.
                Se queremos mesmo (sociedade) conceder ao Ministério Público o poder de realizar investigações diretas, sem a participação da Polícia Judiciária, temos que considerar a investigação criminal como um "bolo" e repartir sua responsabilidade entre essas Instituições, sob pena de um determinado crime ficar impune porque nem o MP e nem a Polícia o investigou, com um apontando o outro como a responsável pela inércia do Estado, num verdadeiro "jogo de empurra".
                O PL 5776 nasce com esse grande pecado.
                Fora isso, esse Projeto de Lei instituiu uma gigantesca independência ao Ministério Público, enumerando o seguinte:
                1) O inquérito policial pode ser instaurado de ofício pelo delegado de polícia ou por requisição (determinação, ordem) do Ministério Público ou de um juiz, ou a pedido da vítima, ofendido, porém nem o delegado de polícia, ou o juiz podem requisitar pela instauração do "inquérito penal" presidido pelo promotor ou procurador;
                2) Como "dono" da ação penal, ou seja, o único que pode oferecer a denúncia (processar) alguém pela prática de um crime, o Ministério Público pode, durante o curso da sua investigação ou a da do delegado de polícia, propor acordos de imunidade ao investigado, delação premiada (quando um investigado denuncia seus cúmplices) e sobrestar (paralisar) a propositura da ação penal  (não denunciar o investigado), tudo sem a participação e a concordância do delegado de polícia, que nos casos em que estiver investigando poderá, apenas, sugerir tais medidas ao Ministério Público;
                3) Toda e qualquer medida que dependa de ordem judicial para ser executada, como quebra de sigilos, mandados de busca e de prisão, o delegado de polícia deve encaminhar sua representação ao Ministério Público antes do juiz decidir, enquanto o promotor ou o procurador, no "inquérito penal", se reporta diretamente ao juiz; bem, se o caso investigado pelo delegado for rumoroso, o que impede o Ministério Público decidir instaurar o seu "inquérito penal" para "roubar" a investigação da Polícia?;
                4)  O Ministério Público, e só ele, poderá realizar vistorias ou inspeções, durante o curso do seu "inquérito penal", substituindo Órgãos como a vigilância sanitária, Receitas, defesa do meio ambiente, conselhos profissionais, etc. e etc;
                5) O Ministério Público poderá requisitar (ordenar, determinar) a qualquer Órgão público ou privado, incluindo empresas telefônicas, instituições financeiras, serviços de proteção ao crédito, provedores de internet, concessionárias ou permissionárias de serviço público e administradoras de cartão de crédito, informações, documentos, perícias e dados cadastrais, bem como "acesso incondicional a qualquer banco de dados de caráter público ou relativo a serviço de relevância pública, inclusive on line"; enquanto o delegado de polícia só poderá obtê-los mediante ordem judicial e com a aquiescência do Ministério Público, ou pedi-los ao próprio Ministério Público; enfim, o "inquérito penal" é bem mais "poderoso" que o inquérito policial e mais uma vez, aí, o promotor ou o procurador poderá "roubar" a investigação do delegado de polícia;
                6) O artigo 23 desse Projeto de Lei confere ao Ministério Público, além dos poderes referidos no item anterior, outros tantos durante o "inquérito penal" que não foram igualmente concedidos aos delegados de polícia durante o inquérito policial, limitando a sua eficácia;
                7) Enquanto o inquérito policial continuará tramitando entre o delegado de polícia e o Ministério Público, o "inquérito penal" tramitará internamente no Ministério Público, e em nenhum dos casos o juiz poderá intervir durante o curso deles; mais uma vez, aí, se o promotor ou o procurador quiser "roubar" a investigação do delegado bastará apenas que ele tire cópias de tudo e instaure o seu próprio "inquérito penal";
                8) Enquanto o delegado de polícia tem 30 dias para concluir as suas investigações, o promotor ou procurador tem 90 dias! Caso o delegado necessite de mais prazo, deverá solicitá-lo ao Ministério Público;
                9) O inquérito policial tem que ser concluído no prazo máximo de 90 dias e a sua prorrogação  só poderá ser concedida pelo Ministério Público mediante justificativa do delegado de polícia, enquanto o "inquérito penal" poderá ser prorrogado por igual período e sucessivamente (indefinidamente), mediante autorização do próprio Ministério Público; significa dizer que o "inquérito penal" não tem prazo para acabar;
                10) Enquanto o delegado de polícia não dispõe de prerrogativas para investigar e a Polícia continuará subordinada aos governantes, o promotor e o procurador gozam de direitos como inamovibilidade, independência e vitaliciedade no cargo, além de que o Ministério Público é uma Instituição independente do poder Executivo, quase um outro Poder da República;
                Vê-se que as investigações do Ministério Público poderão tudo enquanto às da Polícia Judiciária poderão caso o Ministério Público concorde. É a máxima que vimos nascer nesses dias de que "a investigação da Polícia não exclui o Ministério Público, mas a do Ministério Público exclui a Polícia".
                Por mais de uma vez vimos que o Projeto de Lei 5776/2013 promove apenas a insegurança jurídica e coloca a Polícia Judiciária e o Ministério Público numa rota definitiva de colisão entre essas importantes Instituições, ao invés de garantir um trabalho conjunto e de cooperação.
                O inquérito policial, mesmo que a Constituição não tenha determinado essa providência, passou a tramitar entre as Delegacias e as promotorias, excluindo o juiz do controle de legalidade das investigações, o que ocasionou que o Ministério Público passasse, ele mesmo, a ouvir pessoas em seus gabinetes e realizar diligências policiais, requisitando policiais militares e civis e diminuindo, ainda mais, o contingente policial.Até a promulgação da Constituição, em 05/10/1988, com base na Lei 4.611/65, nos crimes de trânsito, a ação penal tinha início ainda nas Delegacias de Polícia, mediante uma portaria do delegado, funcionando a autoridade policial como verdadeiro juiz de instrução, ouvindo todas as partes no sistema do contraditório, remetendo o processo ao juiz relatado e pronto para sentença, quando só então participava o promotor.
                Sob o argumento de que quem investigava não podia acusar, as associações de classe do Ministério Público defenderam o fim dessa lei durante a Assembleia Constituinte de 1988, colocando no texto a expressão "privativa" no inciso I do artigo 129 quanto a titularidade da ação penal pública, obviamente que respeitando o artigo 28 do Código de Processo Penal, que prevê a possibilidade de uma ação penal subsidiária da pública em caso de inércia do Ministério Público, e apenas nessa hipótese.
                Mas o que se percebe, agora, é que esse argumento não tem mais nenhuma importância, e o que esse Projeto de Lei quer é a reinstalação, a reedição, da inquisição, onde quem acusa também investiga, agora com contornos tupiniquins.
                É óbvio que a investigação criminal precisa ser aperfeiçoada e mais óbvio ainda que as Instituições policiais precisam ser fortalecidas, pois há deficiências. Precisamos criar mecanismos para que o Ministério Público possa, em determinado momento, assumir a presidência de um inquérito policial, se as circunstâncias assim permitirem e com a devida autorização da Justiça.
                É óbvio que o Ministério Público pode e deve continuar a ser alimentado pelo Banco Central, as Receitas, os Tribunais de Contas, o COAF, o IBAMA e outros tantos Órgãos que promovem a apuração de infrações penais durante o curso de suas atividades cotidianas de fiscalizar e defender o patrimônio público, o Tesouro, o meio ambiente, etc. Mas é claro que o Ministério Público tem que atuar em conjunto com a Polícia Judiciária caso seja necessária a colheita de provas contra os criminosos.
                É óbvio que o Ministério Público é uma Instituição fundamental no combate a corrupção e a impunidade, mas não mais importante que a Polícia Judiciária nessa tarefa.
                É óbvio que, além de promover a acusação judicial, o Ministério Público tem relevantíssimas funções na defesa dos interesses individuais e coletivos, mas não menos óbvio que a Constituição de 1988 não conferiu ao Ministério Público a possibilidade dele relaizar investigações diretas, sem a Polícia Judiciária.
                Concluindo, o Projeto de Lei 5776/2013 beira a aberração jurídica porque para se prever a possibilidade do Ministério Público investigar é preciso alterar os artigos 129 e 144 da Constituição, que tratam do assunto, ou seja, não deverá, ou não deveria, ser aprovado na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados.
                Além do mais, esse tema, tão importante para as garantias individuais dos cidadãos, merece ser amplamente discutido e debatido pela sociedade, que precisa saber exatamente quais direitos estão em jogo, os riscos, os perigos e suas vantagens, e não apenas ser alvo de manipulação por setores da mídia ou por grupos de pressão, cuja atuação esconde interesses de ordem pessoal e corporativista.
                Se a PEC 37 foi rejeitada por ser a "PEC da impunidade", o PL 5776 deve igualmente ser rejeitado, como está, por ser o "PL da inquisição".

Um comentário:

  1. Acho que isso aí vai diminuir a importância da policia como um todo. Como vão fazer, anexar as delegacias aos prédios do MP?

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